
Colaboração com o Jornal Pontívirgula
Por Tiago Coelho
foto: Reuters – Dado Ruvic/File Photo
Tradicionalmente, a diplomacia clássica era servida pela própria função de um diplomata ou de um soldado. A concepção realista compreende essas duas funções como espelhos dos dois mecanismos base das relações externas de um Estado: a diplomacia e a guerra, respectivamente. Com a abertura ao multilateralismo, novas formas de diplomacia foram desenterradas e abriram um novo campo para o exercício da política negocial, mas o essencial, quanto aos fins, manteve-se. Quando em busca de ambições tipicamente políticas, os países podem obtê-la de um modo suave e harmonizado, ou, por outro lado, obtê-la por meio de uma ação mais próxima do considerado coercivo. Além de poder fundar acordos cooperativos, a política externa de um país pode incorrer a uma postura dissuasora.
Vacinas: Desigualdade e Solidariedade
Ora, logo que surgiram as primeiras vacinas e a sua produção foi posta em prática (cada vez mais reforçada), rapidamente se estabeleceu um quadro desigual entre os vários países: à partida, só uma parcela do mundo é que tinha acesso às próprias vacinas desenvolvidas nacionalmente, ou por meio de cooperação regional, sendo a União Europeia o melhor exemplo. Muitas entidades, sejam elas as organizações internacionais, ONG’s ou autoridades religiosas, apelavam incansavelmente à solidariedade e cooperação internacional neste momento difícil.
Resguardados sobre a cooperação internacional, países como a China, Índia e Rússia aproveitam o contexto para praticar a distribuição ou venda de vacinas a baixo custo. Inadvertidamente, os EUA e a UE deixaram escapar estes primeiros passos no comando da vacinação a nível global. Os primeiros países a chegar foram estes três: a China aproveitou o espaço deixado pelos EUA e ocupou-o de forma esforçada, tentando distribuir vacinas pelos países de baixo e médio desenvolvimento; a Rússia, aproximou-se ultimamente de vários países do leste europeu, conseguiu também acordos com estados tipicamente alinhados com a Federação, e cumpriu requisitos essenciais para ganhar a confiança face à questão da transparência com líderes de potências europeias; já a Índia – a maior produtora de vacinas no mundo –, em disputa regional com a China, quanto muito tem respondido com também alguma distribuição própria, devido à envergadura produtiva que dispõe, ainda que não sejam ela detentora das vacinas produzidas.

A China tem vindo a reforçar as relações diplomáticas com países participantes na Belt and Road Initiative, e logo desde início da pandemia pôde anexar uma parte centrada na saúde: uma “Health Silk Road” descrita por Xi Jinping. Por vários motivos, nomeadamente o facto de algumas vacinas chinesas somente incorporarem uma dose, algumas elites do mundo em desenvolvimento acolhem estas vacinas chinesas. Dentro desse leque encontram-se países como Chile, Camboja, Perú, Sérvia, os Emirados Árabes Unidos (UAE), Indonésia, Turquia e o Zimbabwe, que receberam doses pessoalmente ou publicamente. Inúmeros donativos foram feitos a nações como a Palestina (40.000), a Síria (150.000) e Serra Leoa (200.000). Muitos destes donativos, apropriam-se a jogadas de imagem em benefício do lugar de liderança, inicialmente deixado livre pelos EUA.
Vacinas COVID-19: o novo instrumento diplomático
A diplomacia de vacinas não é exclusivamente uma nova faceta da rivalidade entre a China e o Ocidente, mas meramente uma continuidade da mesma. Na visão de Emmanuel Macron se o Ocidente e particularmente a União Europeia tiverem uma abordagem abrangente e coordenada, a longo prazo poderão claramente ser os agentes mais eficientes. Isto porque, “on the very short run, we can be impressed by the Chinese efficiency. This is true. This is a little bit humiliating for us as leaders, perhaps as countries.” O próprio reconhece o falhanço neste primeiro arranque. A China tirou desse erro uma vantagem clara sobre as restantes potências mundiais. Contudo, as dádivas chinesas deixam um pouco a desejar, uma vez que, no total dos 24 países a quem a China doou vacinas, os números rastejam as dezenas ou centenas de milhares para países que integram milhões de habitantes. Simultaneamente, as encomendas feitas pelo Brasil e a Turquia observaram atrasos e complicações face à transparência informativa, relativa à 3ª fase dos ensaios clínicos. O tiro saiu pela culatra em várias situações, e agora poderá ser a vez de o Ocidente assumir o comando que lhe é necessário assumir, assim que a produção for consolidada.
Enquadrada com a geoestratégia tradicional russa, a distribuição da vacina Sputnik V tem cumprido um sucesso relativo. Ultimamente, o país tem vindo assinar acordos com companhias de produção indianas, objectivados a produzir no total mais de 100 milhões de doses no primeiro ano. Em contraste com a China, a vacina Sputnik V é acompanhada dos resultados dos ensaios clínicos, descartando riscos que a falta de transparência geralmente comporta. De um modo geral, a Federação visa prestar apoio a vários países no Leste Europeu, nomeadamente a Eslováquia, Bielorrússia, República Checa, Hungria. Recentemente, novos acordos podem ser esperados com a finalidade de uma produção conjunta com França e Alemanha – especulado numa discussão entre Angela Merkel e Emmanuel Macron.
O crescente investimento da China no que a Índia considera sua esfera de influência, incentiva esta última também a contrabalançar a influência geopolítica da China, enviando vacinas de forma desesperada para os países vizinhos, incluindo por exemplo o Bangladesh (dois milhões de doses), Sri Lanka (500.000), Mianmar (1,5 milhão). O único país da região que não recebeu a vacina da Índia é o seu arquirrival, o Paquistão, para o qual a China prometeu 1,2 milhão de doses.
O novo paradigma da política internacional
O imediatismo destes países demonstra provavelmente o quão o mundo mudou no ramo da política internacional, principalmente no plano da diplomacia à escala global. Onde esforços como estes elevam as pretensões dos países a comandar e orientar a política regional, e assumirem-se como potências que são. Ao mesmo tempo, acamam as suas imagens para o exterior, e porventura limpam e lavam atitudes mais controversas em outras matérias. A Rússia e a China, camufladas por este importante, mas baralhado espírito solidário, agem ainda assim, para efeitos úteis à comunidade internacional. A competição torna-se benéfica. A instrumentalização da vacina no palco das relações internacionais, deixará eventualmente de ser visto de um modo obscuro, pois preventivamente alisará os efeitos da pandemia a nível regional e/ou mundial, e acabará por ser assumido também pelo Ocidente uma boa parte desta distribuição. A disputa pela influência exercida, neste sentido, é proveitosa para o mundo mandar abaixo o quadro inicial (desigual) que se instalou.
Existem vários exemplos similares a este, que podemos encontrar à larga escala desde a Guerra Fria. O investimento de capital chinês alocado na Europa, desde a crise de 2009, é um exemplo que reviveu vigorosamente a diplomacia económica, e procurou estabelecer uma maior interdependência complexa e superiorizada da China no Velho Continente.
O conceito diplomático e dissuasor apresenta um padrão, menos institucional mas equivalente. Enquanto crises a esta escala acontecerem, é claro, haverá sempre países com poder suficiente e grandes ambições a agarrarem-se a todo o tipo de instrumentos e mecanismos auxiliadores, a fim de ganhar influência e uma boa imagem aos olhos dos outros (do mundo).
Cada vez mais, noutros modos, encontram-se poderes suaves de influência, que têm a qualidade de balancear e aproximarem lógicas de imagem às lógicas de influência. A predominância do smart e soft power, dificultam a compreensão da realidade de ações como estas, pois ofuscam objectivos subentendidos e limitam a visão do que vai na cabeça dos líderes. Assim, se cimenta a transformação do palco internacional num palco teátrico, cada vez mais determinado por jogadas menos arriscadas e mais proveitosas: um jogo de imagem e influence.
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