
os maias
Colaboração com o Jornal Pontívirgula
Por Marta Mendes
Ser-se uma obra clássica da literatura é duro. Aguentar décadas sucessivas de leituras e interpretações, manter-se inesgotável, testar os limites da sensibilidade de cada geração e sobreviver. Os leitores contemporâneos raramente têm em consideração este percurso de vida, interpretam cada obra como se tivesse sido escrita na semana passada, perdem a noção do contexto histórico. À margem de cada obra que persiste sucedem-se as afetações próprias de cada época, aquelas que possuem sempre uma visão mais profunda das questões em causa. Há sempre uma superioridade moral em relação ao passado.
Nenhuma obra, para que seja grande, consegue escapar e a obra queirosiana não é exceção. A sensibilidade da nossa época diz-nos que Eça de Queiroz escreveu “racismo” nas várias páginas d’Os Maias e que isso merece a devida atenção. Dêmos-lhe, pois, aquilo que pedem os entendidos.

O livro Os Maias foi publicado em 1888, época em que a perspetiva racista era dominante na sociedade ocidental e nos estudos antropológicos. Assim, quando Eça desenvolve a sua obra não lhe é possível desligar-se da ideia da superioridade branca porque isso simplesmente não era colocado em causa à época. Estranho seria se a superioridade de Maria Eduarda proviesse de pele e cabelos negros. Contudo, fazer juízos de caráter através de uma obra ficcional e juízos de valor através das vivências do nosso tempo aproxima-se do ridículo e afasta-nos do cerne da obra em questão.
Os Maias nos dias de hoje
A obra é o que é. E porque é que nos dias de hoje não se pode escrever com sarcasmo, desdém, perversidade, ambiguidade? Porquê retirar a magia aos livros? As personagens podem ser apenas personagens, não têm de representar sempre o ideal da sociedade. O mais famoso livro de Eça não tem de ser “uma ferramenta ideal para criar oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis, para que possamos atender às necessidades de todos os alunos”, como diz a investigadora Vanusa Vera-Cruz Lima, professora Cabo Verdiana que trouxe o debate à luz do dia.
O problema da nossa época é querer utilizar qualquer pretexto para a formação das almas através de notas de rodapé pedagógicas. Este excesso de pedagogia deixa os antigos autores à mercê das sensibilidades, dando voltas nos túmulos. Fazemos juízos sobre o caráter dos autores através daquilo que as suas personagens dizem e, como isso não bastasse, ignoramos o contexto histórico das obras. Tudo deve ser lido pela lente do século XXI, infinitamente superior àquele ignóbil passado.
Deixemo-nos de devaneios. A leitura de Eça de Queirós nada tem que ver com uma aula de história sobre racismo e preconceitos porque, antes dos africanos, os portugueses deveriam ser os primeiros a tomar ofensa nas palavras do autor, lessem eles a obra com a devida atenção. A uniformização das personagens não pretende elevar a raça branca, mas descrever os lisboetas. Afirma Eça em carta: “Em Portugal há um só homem – que é sempre o mesmo ou sob a forma de dandy, ou de padre, ou de amanuense, ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir; sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que eu pinto – sob os seus costumes diversos, casaca ou batina. E é o português verdadeiro. É o português que tem feito este Portugal que vemos.”
Numa sociedade que lê pouco, os que o fazem tornam o exercício numa tentativa de adulterar o seu significado através de uma estupidez bem intencionada. Ser-se um clássico é difícil!

Este artigo resulta de uma parceria entre a Rede e o Jornal Pontivírgula em que, mensalmente, damos destaque a um dos artigos da edição desta publicação produzida por um grupo de estudantes da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa.
Sob a orientação de Filipe Vasconcelos, o Jornal Pontivírgula aborda temas e traz-nos análises das mais variadas áreas da atualidade, desde a Cultura à Política, passando pelo Desporto e Sociedade, entre outros. Podes consultar o destaque do mês passado aqui ou seguir o Jornal no Facebook e no Instagram e consultar a edição de abril aqui:

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