
Colaboração com o Jornal Pontívirgula
Por Sofia Guerreiro de Campos Pereira
Tique-taque, tique-taque… Assim começa o dia, assim se desperta a minha mente. Os segundos correm inexoravelmente e, com eles, corre o tempo que se corrói, numa dolorosa contagem decrescente.
As minhas pálpebras entreabrem-se timidamente, as pupilas dilatam denunciando o tumulto que consome a consciência já numa hora tão precoce do dia. Aguardo o ensurdecedor toque do despertador que insiste em contribuir para a minha loucura, num grave som exacerbado que fere o ouvido e acutila o coração.
Ainda que sabendo que a chegada desse temido toque se avizinha, conservo a posição, aconchego-me nos lençóis, sem no entanto procurar neles aquecimento, apenas conforto, um conforto efémero, quase escusado, mas que sempre aconchega. O momento chega num breve suspiro. O toque faz-se ouvir. Terrível esse, o toque que, sem qualquer razão aparente para além da coisa chamada esquecimento, insisto em manter. Uma unidade de tempo depois (a mais pequena que possam conceber), invade todo o espaço, consome-o e toma-o como seu.
Levanto-me num movimento ímpeto, esgotando logo nesse meu ato de levantar toda a energia que era suposto conservar ao longo do dia. Caminho em direção à toilette (vamos chamar-lhe assim, mantendo o decoro do discurso) e desperta-me uma generosa quantidade de água fria que embate contra a minha pele numa sedutora promessa de salvação da realidade em que estou prestes a insinuar. Claro que essa sensação dura somente uns míseros segundos, regressando eu quase de imediato à cruel existência, à impiedosa/implacável época de exames.
Ficaria bonito dizer que me dirijo à cozinha e preparo o quente e espesso líquido sem o qual não (sobre)vivo, seguro a caneca nas mãos enquanto escuto o leve cantar dos pássaros e deixo que a cafeína percorra as minhas veias e desperte as minhas células, mas não, não o faço. O pequeno-almoço é preparado com a maior brevidade possível, o sabor nem é quase sentido, de modo a não perder o foco.

À secretária, onde a magia tem início, esfrego os olhos (quase em papa), inspiro fundo, projeto a cabeça para trás numa inelutável tentativa de resistência, para logo depois retomar a posição corcova que o meu corpo assumiu já como natural. Os dedos iniciam a sua marcha pelas infindáveis teclas que encaixam numa perfeita simbiose no ecrã que me derrete os olhos. Palavra a palavra, folha a folha, vou queimando as pestanas. Quando sinto o latejar da pálpebra, queimando subtilmente, reconheço que é tempo para uma pausa. Paro. Recomeço. Porque o tempo não para e não sente certamente, esse tempo que segue em frente e não espera pela gente. À medida que avanço e desafio a resistência oferecida (atenciosamente) pelo meu corpo, sinto desprender-se o êxtase, a impetuosidade, recusando grosseiramente a hospitalidade por mim até então oferecida.
Contudo, em todo este doloroso processo acho alento na convicção de que tudo valerá a pena, não sendo então a alma pequena, de que um dia olharei para trás e com certeza o considerarei tempo bem empregue, energia bem investida. Será? Esperemos que sim, pois de outro modo não teria esta penitência fundamento. Ou terá, ainda que dissimulado? Quando passa a tempestade, o sossego retoma o seu lugar, os destroços, como que por magia, tornam-se invisíveis ao olhar, o alento é recuperado, avivam-se as forças e parece possível o inatingível, verosímil o improvável. Tal demonstra somente que, para conhecer o paraíso oculto para lá da cascata, temos de primeiro sofrer o embate do pesado curso de água, sendo que essa transposição sempre se afigura mais fatigante, mais demorada. A impaciência, companheira da nossa geração, torna tudo mais difícil. Devemos de uma vez por todas entender que é do processo que advém o crescimento, independentemente do seu desfecho.
(…)
Ao cumprir com a brilhante e, aparentemente impossível lista de objetivos diários, detenho-me por um momento nas imagens que se projectam para lá da fenestra e contemplo-as, questionando-me se algum dia fiz realmente parte dessa realidade exterior que se me apresenta. Dramatismo puro, é certo.
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Capa Jornal Pontívirgula – edição Junho 2021
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